Compacto tinha fama de baixa qualidade mas rodou 22 dias por 24h provando sua resistência. Por Marcos Camargo Jr
No Brasil da década de 1960 pouquíssimas pessoas tinham acesso a um automóvel, porém a indústria automobilística crescia a passos largos. A partir de 1959 a Willys Overland que fabricava veículos como o Jeep também obteve a licença para produzir o Dauphine, um carro de sucesso na Europa e que seria lançado por aqui naquele ano.
O sedã compacto chegou junto com as primeiras versões nacionais do Volkswagen Fusca e junto com o DKW Belcar e Vemaguet eram os compactos nacionais mais acessíveis. Porém a fama dos Renault Dauphine e a partir de 1962 do Gordini era de uma aparente fragilidade.
O AutoShow entrevistou o piloto Bird Clemente (falecido em outubro de 2023) há alguns anos em um documentário em vídeo. Ele dizia: “o Dauphine veio para o Brasil e nós tínhamos que colaborar com a promoção das vendas (…) e a ideia de fazer um recorde de resistência era do publicitário Mauro Salles que tinha a conta da Willys”.
O carrinho era produzido sob licença da Renault pela Willys Overland começando em 1959 com o Dauphine até 1968 com o Gordini. Porém a fama era de que o carro seria frágil lhe rendeu o apelido de “leite glória (desmancha sem bater)” em alusão ao famoso comercial da época.
“A fama, o que se dizia, seria de que o carro era frágil. E ele realmente era frágil. Não estava preparado nem projetado para as condições do Brasil para a rusticidade das nossas ruas”, lembra Bird Clemente.
Assim, em outubro de 1964, há quase 60 anos, a Willys planejou um evento para comprovar a qualidade do Gordini. Ele cumpriria o recorde de resistência ao rodar 50.000km sem parar no autódromo de Interlagos em São Paulo.
O espaço não estava preparado, relembra Bird. “Foram 21 dias construindo a estrutura, até alojamentos, para poder receber o teste de resistência no autódromo que naquela época também era muito simples”, relembra.
Paul Massonet, representante da Federação Internacional de Automobilismo, veio da França para poder homologar o teste, um prestígio para a época e mérito da Willys que queria fazer um registro sério indo muito além de uma estratégia publicitária.
Um Renault Gordini bege claro foi retirado de forma aleatória da linha de produção sem qualquer preparação prévia.
Ao longo de 22 dias foi conduzido dia e noite de forma ininterrupta pelos pilotos Bird Clemente, Luiz Pereira Bueno, José Carlos Pace, Chiquinho Lameirão, Wilson Fittipaldi Jr, Carol Figueiredo e Geraldo Meirelles. Também Vladimir Costa, Danilo de Lemos e Vitório Andreatta além de Luís Antônio Greco, ex-chefe da equipe Willys de competição também dirigiram o carro.
O motor Ventoux de 845cc do Gordini tinha 40cv na medição da época e levava longos 28,7s para chegar a 100km/h com seus 750kg. Porém mantinha velocidades altas por muito tempo chegando a 130km/h. Durante o teste a média estava em 116km/h.
Foram 133 recordes quebrados ao todo mas o carro quase não consegue completar os 22 dias de teste. Após uma semana Bird Clemente deixou o carro escapar em uma parte de asfalto recém feita e o carro capotou. “Por uma distração deixei o carro escapar do ‘trilho’ para o asfalto recém feito que tinha muito cascalho, isso por erro meu mas também por erro da organização”, admite.
O carro foi “desamassado” na hora, recolocado na pista e seguiu rodando sem problemas. Ali foi escrito em uma das peças de estamparia o nome “Teimoso” talvez por estratégia de marketing e o apelido pegou a partir daquele momento afinal o carro ficaria em linha por mais quatro anos.
Bird Clemente trabalhou com a Willys durante toda a década de 1960 e sempre fez questão de relembrar os grandes momentos vividos no automobilismo e também como piloto de testes da marca.
No final das contas as vendas seguiam estáveis para o Gordini enquanto o Fusca crescia muito em volume de vendas. Mas o Gordini da Renault era muito mais eficiente e do ponto de vista de motorização bem mais moderno. Tinha suspensão traseira “Aerostable” com coxins pneumáticos de borracha que atuavam como reforço para a atuação das molas e tornavam o carro bem estável.
A Willys tinha o projeto M em desenvolvimento, que seria o Renault 12, sucessor do Gordini, que no Brasil deu origem ao Ford Corcel. Isso porque a Ford comprou a Willys Overland em 1967.
A Willys aprimorou muito do projeto original após o recorde de resistência. O Gordini tinha tendência de quebra do câmbio de aparência frágil, travamento do freio a tambor, os semieixos no câmbio quebravam com facilidade com tantos solavancos das vias esburacadas do Brasil e as borrachas da suspensão também duravam pouco. Mesmo após o Gordini III que trazia freio a disco, novo acabamento e promessa de maior qualidade as vendas não aceleraram.
No total 74.620 unidades entre as várias versões (23.887 do Dauphine, 41.045 do Gordini, 8.967 do Teimoso e apenas 721 do 1093 foram produzidas.
A Willys trabalhava em um novo projeto de carro de entrada a partir de 1966. Era o projeto M que daria origem ao Renault 12 e cujo projeto foi aproveitado como Corcel pela Ford, empresa que comprou a Willys em dificuldades em 1967. Virtualmente a linha Renault esteve presente nos motores 1.4 usados no Corcel que evoluiu para os motores CHT nos anos 1980 e seguiu até os anos 1990.
O Gordini deixou de ser produzido em 1968 em meio aos últimos suspiros da Willys Overland. A Ford então lançou o Corcel no mesmo ano.
Os Renault só voltariam ao Brasil em 1992 com o Clio por meio da aliança AMC (Automóveis e Motores do Brasil).
O recorde de resistência foi relembrado em um desfile de carros antigos – vários Gordinis, um Dauphine e também um Willys Interlagos além de um clássico R8, cruzaram o autódromo e fizeram uma volta histórica. O evento teve a participação de ex pilotos e também da família do ex-piloto Bird Clemente e vários proprietários dos carros no Festival Interlagos.
VEJA O DOCUMENTÁRIO do AutoShow FEITO COM BIRD CLEMENTE NA OCASIÃO DOS 50 anos do recorde de resistência do Gordini